Atos, discursos, história, cultura e mentalidades.
Vê-se e ouve-se o que, incompreensivelmente, só alguns querem: em Lisboa, impede-se a realização de uma peça, com a agressão a um ator de forma fortuita e irracional; atacam-se barbaramente adeptos de um clube desportivo, após um jogo de hóquei em patins; em vários pontos do país, habitados pelos que nos procuram, verificam-se movimentações contra imigrantes; aumentam, cerca de 30%, denúncias de violência doméstica; cresce a criminalidade violenta provocada por organizações mafiosas; tornam-se mais do que evidentes manifestações progressivas de extremismos políticos e formas de populismo que comprometem a segurança e o equilíbrio social.
A questão não é apenas nacional. Os exemplos multiplicam-se por países e continentes (na Europa, na América trumpiana, em África, no Oriente.
Tanta desgraça de indignidade humana, tanto desconcerto do mundo quando mais se pede paz, ética, responsabilidade, segurança... a humanidade e o humanismo que nos fazem ser diferentes.
No dia de hoje, celebrando-se um poeta, uma língua, a cultura da portugalidade, há todo um discurso que faz a diferença: a tradução de um espírito, de uma mensagem que ilumina o sorriso de muitos e o desconforto de alguns outros.
E, assim, se evocam grandes poetas, a sua universalidade e atualidade de pensamento, apesar da passagem e da evolução dos séculos:
"... é reconfortante saber que os professores deste país continuam a ler às crianças epigramas, redon-dilhas e vilancetes de Camões como se fossem filmes modernos feitos de palavras, o que mostra que os portugueses continuam vivamente enamorados do seu poeta maior.
Mas se o patrono destas celebrações é o poeta do virtuosismo verbal e do amor conceptual, o amor maneirista, o poeta do questionamento filosófico e teológico como é em Sôbolos Rios que Vão, e o poeta dos longos versos enfáticos sobre o heroísmo dos viajantes do mar, ao regressarmos a todos esses versos escritos há quase quinhentos anos, encontramos coincidências que nos ajudam a compreender os tempos duros que atravessamos, tão em conformidade com os tempos em que ele próprio viveu.
Camões, tal como nós, conheceu uma época de transição, assistiu ao fim de um ciclo, e sobre a consciência dessa mudança, no conjunto das mil cento e duas oitavas que compõem Os Lusíadas, vinte e duas delas contêm avisos explícitos sobre a crise que se vivia então. Aliás, hoje é ponto assente que o poema épico encerra um paradoxo enquanto género. O paradoxo de constituir um elogio sem limites à coragem de um povo que havia resultado na criação de um Império e, em sentido oposto, conter a condenação das práticas que passados cinquenta anos impediam a manutenção desse mesmo império. E nesse campo, pode-se dizer que Os Lusíadas, poema que no fundo justifica que o Dia de Portugal seja o Dia de Camões, expressa corajosas verdades, dirigidas ao rosto dos poderes que elogia.
É bom lembrar que entre os séculos XVI e XVII três dos maiores escritores europeus de sempre coincidiram no tempo apenas durante dezasseis anos, e no entanto os três desenvolveram obras notáveis de resposta ao momento de viragem de que eram testemunhas. Foram eles Shakespeare, Cervantes e Camões. De modo diferente, mas em convergência, procederam à anatomia dos dilemas humanos, e entre eles os mecanismos universais do poder, corpus que continua válido e intacto até aos nossos dias. Sobre o poder grandioso, o poder cruel, o poder tirânico, e o poder temeroso e o poder laxista.
No caso de Camões, de que se queixa ele quando interrompe o poema das maravilhas da História para lembrar a mesquinha realidade que envenenava o presente de então? Queixava-se da degradação moral. Mencionava "o vil interesse e sede immiga/ do dinheiro, que a tudo nos obriga", e evocava entre os vários aspectos da degradação o facto de sucederem aos homens da coragem que tinham enfrentado o mar desconhecido, homens novos, venais, que só pensavam em fazer fortuna. Mais do que isso, queixava-se da subversão do pensamento. Queixava-se da falta de seriedade intelectual que resultava, depois, na prática, na degradação dos actos do dia a dia. Escreve o poeta no final do Canto VIII – "Este deprava às vezes as ciências, /Os juízos cegando e as consciências (…) Este interpreta mais do que sutilmente/Os textos; este faz e desfaz leis; / Este causa os perjúrios entre a gente/E mil vezes tiranos torna os Reis…"
Na verdade, Camões, Cervantes e Shakespeare, de modos diferentes, expuseram os meandros da dominação, envolvidos com o tempo histórico dos impérios em que viveram. Por essa altura, sobre os reis de Portugal, Espanha e Inglaterra, dizia-se que lutavam entre si pelo domínio do Globo Terrestre. Ou, mais concretamente, dizia-se então que os três competiam para ver quem acabaria por pendurar a Terra ao pescoço como se fosse um berloque. Os três autores perceberam bem que em dado momento é possível que figuras enlouquecidas, emergidas do campo da psicopatologia, assaltem o poder e subvertam todas as regras da boa convivência. Escreveu Shakespeare no acto IV do Rei Lear: "É uma infelicidade da época que os loucos guiem os cegos."
Enquanto isso, Cervantes criava a figura genial do alucinado Dom Quixote de la Mancha, que até hoje perdura entre nós como o nosso irmão ensandecido. Por seu lado, Camões, no corpo de Os Lusíadas não falou da loucura, mas a vida haveria de lhe demonstrar que as páginas escritas por si mesmo haviam sido proféticas em resultado dela, a insanidade. O desastre de Alcácer Quibir, ocorrido em 1578, estava assinalado numa das últimas estrofes do canto X. Era a História, como sempre, a confirmar o pressentimento experimentado pela Literatura. No entanto, o fim de ciclo que neste caso aqui interessa não é mais uma transição localizada que diga apenas respeito a três reinos da Europa. Nos dias que correm, trata-se do surgimento de um novo tempo que está a acontecer à escala global.
Porque nós, agora, somos outros, deslocamo-nos à velocidade dos meteoros, e estamos cercados de fios invisíveis que nos ligam pelo Espaço. Mas alguma coisa desse outro fim de ciclo que se seguiu ao tempo da Renascença malograda relaciona-se com os dias que estamos a viver. O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a Terra redonda é disputada por vários pescoços em competição, como se mais uma vez se tratasse de um berloque. E os cidadãos? São público que assiste a espectáculos em écrans de bolso. Por alguma razão os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores e os seus ídolos são fantasmas. É contra isso, e por isso, que vale a pena que Portugal e as Comunidades Portuguesas usem o nome de um poeta por patrono. (...)
Consta que em pleno século XVII, dez por cento da população portuguesa teria origem africana. Essa população não nos tinha invadido, os portugueses os tinham trazido arrastados. E nos miscigenámos. O que significa que por aqui ninguém tem sangue puro, a falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade. Cada um de nós é uma soma. Tem sangue do nativo e de migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizava, filhos do pirata e do que foi roubado. Mistura daquele que punia até à morte e do misericordioso que lhe limpava as feridas.
A consciência dessa aventura antropológica talvez mitigue a fúria revisionista que nos assalta pelos extremos, nos dias de hoje, um pouco por toda a parte, agora que percebemos que estamos no fim de um ciclo e que um outro se está a desenhar, e a incógnita existencial sobre o futuro próximo, ainda desconhecido, nos interpela a cada manhã que acordamos sem sabermos como irá ser o dia seguinte. A pergunta é esta – Quando ficarem em causa os fundamentos institucionais, científicos, éticos, políticos, e os pilares de relação de inteligência homem/máquina entrarem num novo paradigma, que lugar ocuparemos nós como seres humanos? O que passará a ser um ser humano? (...)
Comecei por dizer que Camões nasceu e nunca mais morreu.
Hoje, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, não será legítimo perguntar, sem querer ofender quem quer que seja, perguntar como manteremos a noção de ser humano respeitável, livre, digno, merecedor de ter acesso à verdade dos factos e à expressão da sua liberdade de consciência?"
Lídia Jorge, aquando da celebração do 10 de junho (Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas) deste ano, disse o que muitos querem ouvir; outros relativizam ou renegam. Enquanto estes últimos crescentemente se reveem no que a maioria não quer esquecer, os primeiros aceitam uma inevitabilidade histórica e uma razão forte para colher e viver mundo(s), aceitar a miscigenação cultural, integrar os que (re)encontram em Portugal oportunidade(s) para descobrir ou responder à questão "Onde pode acolher-se um fraco humano / Onde terá segura a curta vida, / Que não se arme, e se indigne o Céu sereno / Contra um bicho da terra tão pequeno?”
A reflexão de Camões, no final do canto I de Os Lusíadas (1572), é interrogação intemporal, buscando um sentido de vida humano, humanista, focado na segurança, na humildade, nessa pequenez e fragilidade ansiosas de uma felicidade que só o pensamento (crítico), a consciência e a espiritualidade (podem) trazer.